segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Coletâneas de Geraldo Augusto de Carvalho


Sem referência de publicação,sem data (talvez inédito):  

Sem trabalho            
                      - Conto por Viriato Vidal
   - Desempregado! Estou des-em-pre-ga-do... –repetiu Raul
 consigo, a um tempo apreensivo e atônito, quando pisou na
rua, saindo do escritório. Só então deixara transbordar a
amargura que lhe enchia a alma; antes, enquanto o patrão
lhe explicava a necessidade de dispensar-lhe  os serviços, Raul mantivera-se firme, recebera o choque com um sorriso, como se já o esperasse; deu razão ao chefe, bem sabia da crise que assaltava os negócios. Tornou assim mais fácil a sua retirada e saiu com dignidade, cabeça alta, sorridente.
   Dois dias depois, ao lembrar-se disso, sorriu tristemente.
Aquele orgulho de família! Recordava-se de ter dito ao patrão que estava mesmo para pedir umas férias, queria descansar um pouco e iria a Poços de Caldas...
   Aliás, o que lamentava não era propriamente a perda do
emprego e sim a ocasião em que fora dispensado. Se ao
menos o patrão o tivesse avisado com antecedência! Como
iria pagar as suas dívidas? Diabo! Bem que sua mãe vivia a
lhe dizer que não pusesse fora todo o dinheiro ganho, que
economizasse um pouco, pensasse no futuro! Nunca lhe
ocorrera a idéia de ser dispensado do escritório sem mais
nem menos, depois de anos ininterruptos de bons serviços;
nem sequer havia reclamado as férias a que tinha direito...
   - Afinal, tudo é bobagem minha. Vou descansar um bocado e depois do carnaval hei de conseguir um emprego melhor ainda.



   E tentou esquecer as tristezas da vida. Dormia bem, até tarde, sossegado como um ricaço; lia. Passeava, fazia visitas. Farreou doidamente no carnaval, gastando o resto dos cobres que ainda tinha no bolso. Depois...
   Depois, procurou colocação. No comércio nada arranjara: a crise estendera-se a todos, e os patrões andavam, numa fúria, a cortar empregados. Da fábrica haviam sido dispensados também uns quatro escriturários... Leu sobre a criação de um novo cargo nas prefeituras. Com certeza ali ninguém ainda sabia disso.
Foi ao prefeito e falou-lhe pedindo o lugar para si, pois ainda não   saíra  o  decreto   municipal   nomeando   o   agente estatístico.
   - Sinto muito, dissera-lhe o prefeito. – Mas já foram designados, para agente e secretário da Estatística, dois funcionários da prefeitura... Qualquer vaga que haja, mandarei avisar ao amigo...
   - Fico-lhe muitíssimo grato, Sr. Prefeito. Boa tarde!
   Lá fora, murmurou:
   - Promessas, promessas... emprego mesmo, só para os afilhados... Pílulas!
   Deixou-se ficar em casa, roído de tédio. Pra que buscar trabalho, sabendo de antemão o que acharia? Sorriu à lembranças dum seu amigo, gordo hoteleiro que dizia sempre, a palitar os dentes: - “No Brasil não há o problema dos sem trabalho. Há é muito vagabundo, muito sem-vergonha querendo viver à custa dos outros. Quem quiser trabalhar, trabalha. É só procurar...”  E falava satisfeito, alisando o ventre farto.
   - Eu só queria saber o que diria o Duarte, na minha situação...
   Quanto a si, estava certo, não seria um parasita, nunca; não tivesse ele aptidões! Quando visse a absoluta impossibilidade de conseguir serviço limpo,
Pegaria no pesado mesmo. Não ali, porém; o orgulho que o levava a trabalhar impedia-o, por outro lado, de expor-se à língua maliciosa dos conterrâneos, conhecedores invejosos do bom nome de sua família, que a tradição apontava como uma das fundadoras do lugar. E, se todos sabiam da sua pobreza, ninguém poderia dizer que um legítimo Godinho descera a um trabalho rasteiro.
   Isso não lhe aconteceria... por que, à hora em que precisasse mesmo de ganhar o pão de qualquer maneira, iria para as fazendas, em São Paulo... Para isso é que os caminhões dos aliciadores de homens ali estavam, todo mês, prontos a levá-lo para escrevo da gleba. Ao menos não teria vergonha, longe dos conhecidos, de pegar no serviço bruto.
   Um dia um parente lhe disse, à noitinha:
   - Ouvi uma conversa a respeito de um concurso para auxiliar da divisão ferroviária. Se te interessa, procura saber melhor de que se trata. Creio que há passe livre para ir fazer os exames. Parece uma boa oportunidade...
   - Vou amanhã ver esse negócio. Penso que o novo engenheiro-residente poderá informar, não?
   Ali estava! Que tolice a sua, pensando em ir para São Paulo! Havia de entrar no concurso, e tiraria o primeiro lugar. Era na certa. E um emprego asseado, boa remuneração... Isso sim!
   Ao dia seguinte, satisfeito, apanhou o bonde para a estação. Perguntou pelo engenheiro.
   - Ali em baixo, à direita. Na porta “tem” uma placa “Escritórios”.
   Empurrou a porta de mola e entrou. Uns oito funcionários, recostados em suas mesas, palestravam. Olharam-no, rapidamente,  continuaram a prosa sobre um campeonato de “foot-ball”.
   - Pouca vergonha! Que folga... – pensou Raul. E alto, para um sujeitinho cheio de “pose”:
   _ faz favor: haverá aqui alguém que me informe sobre um concurso para escriturário desta divisão?
   - Entre... Ali o Dr. Ventura pode lhe dizer.
   O Dr. Ventura mirou-o de alto a baixo.
   - Concurso?
   - Sim. Ouvi dizer que há um concurso para escriturário. Desejaria algumas informações a respeito.
   - Ah, sei... Mas o concurso é hoje... Até ontem eu tinha autorização para dar o passe. O Sr. veio tarde demais.
   - Mas é hoje?... Quer dizer que... a estas  horas...
   - Já deve ter sido realizado, em Belo Horizonte. È só o que o Sr. deseja?
   - Só... muito obrigado...
   Saiu zonzo. Mas que peso! Por uma questão de horas perdera a melhor oportunidade que se lhe oferecera!
   Apanhou o bonde. Quando ia a meio caminho de casa, viu passar o caminhão que recrutava trabalhadores para a lavoura. Segui-o com os olhos, uma idéia a martelar-lhe o cérebro, rítmica, compassada, insistente.
   - É... aqui não arranjo nada... – murmurou, erguendo-se para descer.
   - Como diz? Meteu-se o companheiro de banco.
   - Hein? Nada, não disse nada.
   - Ah! Pensei...
   - Pois não pense. Pensar faz mal, sabe? Perturba a digestão. Passe bem!
   E saltou, deixando o outro bestificado. Foi para casa, fechou-se no quarto e arrumou suas coisas na maleta, mecanicamente, distraído. Sai de novo à rua,foi procurar o contratador   de   lavradores   para  inscrever-se  como emigrante. O paulista, vendo suas maneiras distintas, as mãos lisas e bem  cuidadas,  não queria  alistá-lo. Raul insistiu, dizendo saber que o serviço era exaustivo nas plantações, que não se iludia com a vida lá em baixo, mas queria  trabalhar  de  verdade, era  forte  e  novo,  estava disposto a arriscar-se. O outro, convencido, inscreveu-o afinal para a próxima leva, a partir na madrugada seguinte.
Raul sentiu então uma grande calma tomar-lhe o espírito, uma espécie de abandono, de resignação quase alegre. Não contou a ninguém os seus projetos. Andou com os amigos, como  de  costume, esteve  com  a  namorada,  à  tarde, e
levou-a a um cinema. Somente em casa contou depois à mãe, já deitada, que ia sair cedo, a uma viagem. Não se afligisse por ele, pois ignorava quando voltaria.
A mãe pôs-se a chorar em silêncio, compreendendo vagamente, por intuição, o drama íntimo daquele filho a quem ela mesma transmitira o orgulho forte da raça, a altivez rebelde da família. Mandou-o buscar um cofrezinho antigo, no gavetão da cômoda. Dele tirou, dentre fotografias e cartas amareladas, umas poucas notas de cem mil réis. Separou três e deu-as ao filho:
- Toma, Raul, para não passares muita necessidade, até conseguires um bom lugar. Toma...
- Não, mãe! Não preciso, e a ti eu sei que vai fazer falta esse dinheiro. Não, mãe, obrigado; guarda-o, eu não preciso... obrigado!
- Toma, Raul... Eu te peço... leva o dinheiro; se não precisares, melhor, mas leva... Podes ficar sossegado, que não me fará falta; tomara eu poder te dar mais alguma coisa! Infelizmente, tive que gastar um pouco com a doença do Zico... Pega, é um presentinho de tua mãe. E sê feliz, Raul. Não te esqueças de nós; se a sorte não te ajudar, volta, que sempre a gente se arranja melhor em casa que com estranhos. Sê feliz, meu filho...
O moço beijou, comovido, as lágrimas que rolavam pelas faces da velha.
- Boa mãe! Adeus...
- Adeus, filho... Tens lenços e meias? Não te esqueceu nada? Escreve sempre. E tem cuidado, ouviste? Cuidado com a saúde, cuidado com brigas... Pensa sempre nos meus conselhos...
- Sim, mãe... Adeus.
Foi para o quarto, porém não dormiu. Ficou sentado na cama, pensando, pensando... De que valera tanto sacrifício de sua mãe, mandando-o estudar? Para que? Melhor seria se o tivesse enviado logo de uma vez para a oficina, para o campo, a puxar enxada... Os homens se afastavam da natureza, buscando o brilho artificial das cidades, querendo ganhar sem trabalhar, explorando os semelhantes... Mas de vez em quando a Vida toma a sua vingança, impelindo para a terra os que dela mais fugiam... Como que dizia, a Vida: “Ah! Tens horror ao pó, ao barro de que és feito? Pois olha ai, idiota: cava a terra, caleja as mãos e a inteligência, revolve-te na lama, mistura-te com os vermes... ou, então, rebenta de fome!...
E, pelas quatro e meia da manhã, espremido entre um mulato cretino e um camarada meio bêbado, Raul ouviu, indiferente, a voz do capataz gritar para o  “chauffer”:
- A canaiada ta toda aí? Dexa vê... um, dois, quinze, vinte e um... Confere. Pode rodá!
O caminhão arrancou, barulhento. Muito encolhido, chegando a gola do paletó às orelhas, por causa do frio, Raul Godinho partia, de olhos covardemente cerrados para não ver outra vez a imagem de sua cidade-madrasta...
                                                                                   Viriato Vidal

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